Uma voz
cantarolou debaixo da chuva. Era a preguiça que recomeçava a roer brotinhos de aroeira:
“não tenho medo da chuva
nem do ronco
do trovão.
tomara mesmo
que chova
pra molhar meu
coração...”
nininha não se
conteve:
- cale a boca,
idiota. Na hora da tempestade você ficou tremendo como vara verde só faltou
rezar. Agora fica aí com essa voz de assombração
aborrecendo a gente.
Veio então a procissão das águas caminhantes. Aquela parte do rio, antes tão branca, ia sendo devorada por nódoas barrentas que cresciam dia a dia. a fome das águas devorava tudo. As barreiras decompunham-se para enlamear a pureza do rio. Avolumava-se a torrente e as águas adormecidas durante o período da secar e começaram a correr com mais pressa... Sempre fora assim nos anos anteriores. As praias iam desaparecendo, borbulhando. Parecia incrível mas era inevitável que aquilo acontecesse. no local onde as garças brancas pescavam, onde os sábios jaburus conferenciavam ao entardecer, onde os mangua-ris gostavam de correr com as pernas esguias, onde as galinhas-d'água, os irerês, as inhumas, as gaivotas faziam pouso, onde o jacaré vinha aquecer seu reumatismo ao sol, onde as tartarugas desovavam... Pois tudo aquilo submergia num lençol avassalante de água que redemoinhava, que roncava, que borbulhava, borbulhava...e o rio crescia sempre. A chuva começou a formar grandes poças em torno das árvores. Focos de mosquitos formavam-se onde houvesse água empoçada. A noite perdera sua musicalidade porque a chuva estragara tudo. o canto da noite, das estrelas, da lua, fora metamorfoseado pelo zunir irritante e monótono dos carapanãs esfomeados. nininha pensava nisso tudo. Pior era o corpo retalhado do vovô, mais enegrecido, decompondo-se, meio submerso, mudo e morto para sempre. Com a chuva, uma quantidade de capim verdinho crescia envolvendo e cobrindo o seu tronco. No rio, já totalmente desprovido de praias, grandes árvores passavam, lamentando-se, arrastadas pela corrente. Um medo grande, um medo enorme, tomou conta de nininha. Aquele era o seu destino. A chuva iria até ao fim de Março. Acontecia às vezes atingir também Abril. Estava-se ainda em fins de Novembro... Começava a preocupar-se devido a um comentário do landi:- se as chuvas forem só até Março, as águas não alcançarão você. Por outro lado, a preguiça praguejante resmungava sempre:
- Diacho de chuva que não pára nunca! Também,
faz dois anos que não temos uma grande chuva e que o rio não enche direito...
Indiferente à agonia da árvore a chuva
prosseguia sempre na sua missão. para o seu pesadelo, na noite grande e molhada
o ruído dos grandes troncos arrastados interrompia o seu sono. Vivia com o
coração sobressaltado. Conhecia de longe a árvore que passava chicoteando as
barreiras com o resto dos seus galhos...sentia o corpo moço e cheio
de vida revoltando-se às vezes. Irritando-se contra os desígnios de calamantã. Podia
entrever as folhas novas escorrendo verde, o seu tronco esplendidamente liso,
notavelmente branco, liberto do sujo, acumulado pelos ventos da seca. Ao
seu redor também as outras árvores vestiam-se de verde, mas um verde que
significava ainda esperança e muitos anos de vida. Bonitos como elas se
reflectiam nas pequenas poças d'água, espalhadas pelo chão! Feio e triste,
somente o corpo do vovô, cada vez mais negro e encharcado. Quase soluçou
pensando que nem todas as árvores morrem de pé. Passou Dezembro, estendendo
seus dedos de chuva para Janeiro. Janeiro, ainda mais molhado e silencioso,
cedeu a vez a Fevereiro. A angústia de nininha permanecia, ao mesmo tempo que
seus olhos se grudavam lá no alto, na esperança de que o azul substituísse
definitivamente o tom de chumbo que invadia o céu, como um vício qual
nada! Parecia de propósito que suas ramas se cobrissem de um verde nunca dantes
possuído. Chegara ao apogeu de sua vida vegetal. Do seu posto, lá no alto, podia
divisar tudo. Enxergar a extensão da selva apodrecendo de tanto verdor. Pela força
do seu tronco podia sentir a beleza da própria maturidade. e também da ponta de
seus galhos observava o rio, crescendo ameaçadoramente. E Fevereiro se
foi, alagado em todos os seus dias... Março não trouxe nenhuma esperança. O rio
alcançara o máximo das suas barreiras. O caudal se avolumara e as árvores
rastejadas caminhavam sem destino, em busca do esquecimento.- Bem, minhas
amigas, enjoei daqui. Vou mudar-me. Era a preguiça se despedindo. E sem
emoção alguma caminhou lentamente pelo chão. Se o céu não oferecia estrelas de
noite, de dia o sol morrera. A chuva não se cansava de cair. Quando parava um
pouco, era para mais tarde recomeçar brutal e insistente. E foi assim que Abril
tomou vida. O rio crescia tanto, que tocava nas raízes de nininha. Não sentia o
frio das águas e sim de sua angústia, porejando em todo seu ser. Cada dia que
passava as águas crescentes se infiltravam mais e mais. As barreiras que
sustinham suas raízes principiavam a desmoronar-se deixando à vista garras
ainda não totalmente desenvolvidas e sem apoio. A terra amolecia à sua volta. Não podia
falar, de aflição. Tremenda aflição, lenta e desgraçada! por que não vinha logo
de uma vez? Tremiam-lhe os galhos, na expectativa.
Bendito o raio que caridosamente matara
vovô! Pelo menos ele não testemunharia sua tristeza. Tia tucum nem falava mais.
Ficava com os olhos grudados na água o dia inteiro. O velho landi nem
resmungava para não aumentar o seu tormento. Por vezes olhava para ele, tão
grande e altaneiro, e cismava: “nunca essa água chegará até ele. Se os
índios não o descobrirem morrerá ali mesmo...” agora, qualquer vento
mais forte poderia arremessá-la sobre as águas. Se ao menos a chuva
parasse e o rio deixasse de encher... Qual nada! Lá vinha ele aumentando e mais
manchado de barro, subindo, apresentando mais redemoinhos e borbulhas. Chegou
o meado do mês. Um vento cresceu do outro lado e encrespou ainda mais as águas
do rio. Observou desesperadamente o sopro que se aproximava. O vento estremeceu
com força as suas folhas. Seu corpo mal fixado vacilou para um lado e para
o outro. Tia tucum gemeu desgraçadamente:- agarre-se bem, nininha! Um desalento
inundou-lhe o cerne. O landi gritou, em tom roufenho: - não esmoreça, minha
filha! Equilibre-se, que você vai resistir ao vento. Pela primeira vez
nininha descobriu que o landi possuía uma alma e que lágrimas escuras
respingavam o seu tronco vincado.- Equilibre-se, nininha! A chuva anda mais
fraca e vai parar nestes três dias. Se você resistir agora poderá viver
muito tempo ainda. mas o vento aumentava e sua fraqueza se alastrava
mais.- Agora é tar... de... muito tar... de...o landi comentou,
dirigindo-se a tia tucum: - ela não quer mais viver! Suas palavras
ficaram perdidas e foram arremessadas para longe. O vento crescia mais e
as águas eram atiradas, loucas, num banzeiro fantástico. Principiou a sentir tonturas.
O silvo do vento penetrava em todo seu corpo. Ficou balançando sem poder
aprumar-se. Foi lá, veio cá. Girava, tonta, em todas as direcções. Pesava-lhe
o corpo sobre a fraqueza das suas raízes.um estalo!... As forças cederam. Um
grito de angústia de tia tucum e o seu corpo se projectou, no começo devagar e
logo após com grande ímpeto, nas águas barrentas. Sentiu então aquele grande
frio. O rio arrastando-a, girando-a, em meio a grandes círculos, e a torrente
puxando-a para longe…"
Extraído do Livro “Rosinha minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos.
Páginas 41, 42 e 43.
Li pela primeira vez este livro, pela mão da minha irmã Lita quando ainda era menina e ela me maravilhava com as suas leituras. José Mauro de Vasconcelos, foi o primeiro autor que eu conheci no mundo literário, e depois dele, nunca mais ninguém teve a magia de me fazer dar as gargalhadas que eu dava ao ler certas passagens dos seus livros.
O meu poeta com Alma de Poeta, cuja sensibilidade e meninice conquistou o meu coração e a minha imaginação. Ainda hoje viajo com ele através das suas personagens incrivelmente ricas de detalhes, ternura e realidade. Sei todos os seus livros de cor, no entanto cada vez que os releio as emoções são sempre diferentes, magníficas e mais intensas. A minha alma enriquece-se a cada instante de amor e de compaixão com que José Mauro retracta as situações vividas pelas suas personagens e as cores com que pinta o nosso imaginário, são de um puro e enorme arco-íris.
MUITA LUZ!
Mais uma vez estou voltando
ResponderEliminarcom as mãos estendidas
para segurar as suas com infinito amor.
Que , a alegria de dividir meus sonhos
seja bem recebida por você e ,
que você também compartilhe
desse meu sonho.
Que , nossa amizade nos permita compartilhar
alegrias , felicidades e também nossas tristezas.
A mais preciosa amizade é alimento ,
que sacia nossa alma
é aquela , que crê em nós
é aquela , que nos aceita da forma , que somos ,
pois somos seres humanos
parecidos sim nunca com pensamentos iguais.
Um abençoado e feliz final de semana.
Beijos no coração ,paz e carinho na alma.
Evanir.
PS:Com a chegada da primavera na
postagem tem um mimo
da primavera.
Carinhosamente te ofereço
um mimo é simples mais feito com
muita ternura.
Uma oferta de amor pela nossa amizade.
Obrigada pelo carinho Evanir e pelo mimo.
EliminarBeijinhos de Luz!
Ana Maria
Ele é brilhante e maravilhoso mesmo.Adoro! beijos,lindo dia e fim de semana,chica
ResponderEliminarChica, obrigada amiga.
EliminarBeijinhos de Luz!
Ana Maria
Lindo!!! Os seus livros fazem parte da nossa vida... e eu nunca vou esquecer o teu ar maravilhado pela minha leitura... acho até que os livros tinham mais graça quando eu os lia para ti. Beijinhos e um dia muito feliz. Parabéns!!! Adoro-te, mana!
ResponderEliminarPois é, parece que ainda foi ontem, passa depressa mas o astral continua o mesmo. Adoro estar sempre contigo. Parabéns também para ti(atrasados).
EliminarBeijinhos de chuvas de estrelas!
Ana Maria