sexta-feira, 20 de setembro de 2013

JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS



Uma voz cantarolou debaixo da chuva. Era a preguiça que recomeçava a roer brotinhos de aroeira: 
 “não tenho medo da chuva
nem do ronco do trovão.
tomara mesmo que chova
pra molhar meu coração...” 

nininha não se conteve:
 - cale a boca, idiota. Na hora da tempestade você ficou tremendo como vara verde só faltou rezar. Agora fica aí com essa voz de assombração aborrecendo a gente. 
Veio então a procissão das águas caminhantes. Aquela parte do rio, antes tão branca, ia sendo devorada por nódoas barrentas que cresciam dia a dia. a fome das águas devorava tudo. As barreiras decompunham-se para enlamear a pureza do rio. Avolumava-se a torrente e as águas adormecidas durante o período da secar e começaram a correr com mais pressa... Sempre fora assim nos anos anteriores. As praias iam desaparecendo, borbulhando. Parecia incrível mas era inevitável que aquilo acontecesse. no local onde as garças brancas pescavam, onde os sábios jaburus conferenciavam ao entardecer, onde os mangua-ris gostavam de correr com as pernas esguias, onde as galinhas-d'água, os irerês, as inhumas, as gaivotas faziam pouso, onde o jacaré vinha aquecer seu reumatismo ao sol, onde as tartarugas desovavam... Pois tudo aquilo submergia num lençol avassalante de água que redemoinhava, que roncava, que borbulhava, borbulhava...e o rio crescia sempre. A chuva começou a formar grandes poças em torno das árvores. Focos de mosquitos formavam-se onde houvesse água empoçada. A noite perdera sua musicalidade porque a chuva estragara tudo. o canto da noite, das estrelas, da lua, fora metamorfoseado pelo zunir irritante e monótono dos carapanãs esfomeados. nininha pensava nisso tudo. Pior era o corpo retalhado do vovô, mais enegrecido, decompondo-se, meio submerso, mudo e morto para sempre. Com a chuva, uma quantidade de capim verdinho crescia envolvendo e cobrindo o seu tronco. No rio, já totalmente desprovido de praias, grandes árvores passavam, lamentando-se, arrastadas pela corrente. Um medo grande, um medo enorme, tomou conta de nininha. Aquele era o seu destino. A chuva iria até ao fim de Março. Acontecia às vezes atingir também Abril. Estava-se ainda em fins de Novembro... Começava a preocupar-se devido a um comentário do landi:- se as chuvas forem só até Março, as águas não alcançarão você. Por outro lado, a preguiça praguejante resmungava sempre:

- Diacho de chuva que não pára nunca! Também, faz dois anos que não temos uma grande chuva e que o rio não enche direito...

Indiferente à agonia da árvore a chuva prosseguia sempre na sua missão. para o seu pesadelo, na noite grande e molhada o ruído dos grandes troncos arrastados interrompia o seu sono. Vivia com o coração sobressaltado. Conhecia de longe a árvore que passava chicoteando as barreiras com o resto dos seus galhos...sentia o corpo moço e cheio de vida revoltando-se às vezes. Irritando-se contra os desígnios de calamantã. Podia entrever as folhas novas escorrendo verde, o seu tronco esplendidamente liso, notavelmente branco, liberto do sujo, acumulado pelos ventos da seca. Ao seu redor também as outras árvores vestiam-se de verde, mas um verde que significava ainda esperança e muitos anos de vida. Bonitos como elas se reflectiam nas pequenas poças d'água, espalhadas pelo chão! Feio e triste, somente o corpo do vovô, cada vez mais negro e encharcado. Quase soluçou pensando que nem todas as árvores morrem de pé. Passou Dezembro, estendendo seus dedos de chuva para Janeiro. Janeiro, ainda mais molhado e silencioso, cedeu a vez a Fevereiro. A angústia de nininha permanecia, ao mesmo tempo que seus olhos se grudavam lá no alto, na esperança de que o azul substituísse definitivamente o tom de chumbo que invadia o céu, como um vício qual nada! Parecia de propósito que suas ramas se cobrissem de um verde nunca dantes possuído. Chegara ao apogeu de sua vida vegetal. Do seu posto, lá no alto, podia divisar tudo. Enxergar a extensão da selva apodrecendo de tanto verdor. Pela força do seu tronco podia sentir a beleza da própria maturidade. e também da ponta de seus galhos observava o rio, crescendo ameaçadoramente. E Fevereiro se foi, alagado em todos os seus dias... Março não trouxe nenhuma esperança. O rio alcançara o máximo das suas barreiras. O caudal se avolumara e as árvores rastejadas caminhavam sem destino, em busca do esquecimento.- Bem, minhas amigas, enjoei daqui. Vou mudar-me. Era a preguiça se despedindo. E sem emoção alguma caminhou lentamente pelo chão. Se o céu não oferecia estrelas de noite, de dia o sol morrera. A chuva não se cansava de cair. Quando parava um pouco, era para mais tarde recomeçar brutal e insistente. E foi assim que Abril tomou vida. O rio crescia tanto, que tocava nas raízes de nininha. Não sentia o frio das águas e sim de sua angústia, porejando em todo seu ser. Cada dia que passava as águas crescentes se infiltravam mais e mais. As barreiras que sustinham suas raízes principiavam a desmoronar-se deixando à vista garras ainda não totalmente desenvolvidas e sem apoio. A terra amolecia à sua volta. Não podia falar, de aflição. Tremenda aflição, lenta e desgraçada! por que não vinha logo de uma vez? Tremiam-lhe os galhos, na expectativa.


Bendito o raio que caridosamente matara vovô! Pelo menos ele não testemunharia sua tristeza. Tia tucum nem falava mais. Ficava com os olhos grudados na água o dia inteiro. O velho landi nem resmungava para não aumentar o seu tormento. Por vezes olhava para ele, tão grande e altaneiro, e cismava: “nunca essa água chegará até ele. Se os índios não o descobrirem morrerá ali mesmo...” agora, qualquer vento mais forte poderia arremessá-la sobre as águas. Se ao menos a chuva parasse e o rio deixasse de encher... Qual nada! Lá vinha ele aumentando e mais manchado de barro, subindo, apresentando mais redemoinhos e borbulhas. Chegou o meado do mês. Um vento cresceu do outro lado e encrespou ainda mais as águas do rio. Observou desesperadamente o sopro que se aproximava. O vento estremeceu com força as suas folhas. Seu corpo mal fixado vacilou para um lado e para o outro. Tia tucum gemeu desgraçadamente:- agarre-se bem, nininha! Um desalento inundou-lhe o cerne. O landi gritou, em tom roufenho: - não esmoreça, minha filha! Equilibre-se, que você vai resistir ao vento. Pela primeira vez nininha descobriu que o landi possuía uma alma e que lágrimas escuras respingavam o seu tronco vincado.- Equilibre-se, nininha! A chuva anda mais fraca e vai parar nestes três dias. Se você resistir agora poderá viver muito tempo ainda. mas o vento aumentava e sua fraqueza se alastrava mais.- Agora é tar... de... muito tar... de...o landi comentou, dirigindo-se a tia tucum: - ela não quer mais viver! Suas palavras ficaram perdidas e foram arremessadas para longe. O vento crescia mais e as águas eram atiradas, loucas, num banzeiro fantástico. Principiou a sentir tonturas. O silvo do vento penetrava em todo seu corpo. Ficou balançando sem poder aprumar-se. Foi lá, veio cá. Girava, tonta, em todas as direcções. Pesava-lhe o corpo sobre a fraqueza das suas raízes.um estalo!... As forças cederam. Um grito de angústia de tia tucum e o seu corpo se projectou, no começo devagar e logo após com grande ímpeto, nas águas barrentas. Sentiu então aquele grande frio. O rio arrastando-a, girando-a, em meio a grandes círculos, e a torrente puxando-a para longe…"
Extraído do Livro “Rosinha minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos.
Páginas 41, 42 e 43. 
Li pela primeira vez este livro, pela mão da minha irmã Lita quando ainda era menina e ela me maravilhava com as suas leituras. José Mauro de Vasconcelos, foi o primeiro autor que eu conheci no mundo literário, e depois dele, nunca mais ninguém teve a magia de me fazer dar as gargalhadas que eu dava ao ler certas passagens dos seus livros. 
O meu poeta com Alma de Poeta, cuja sensibilidade e meninice conquistou o meu coração e a minha imaginação. Ainda hoje viajo com ele através das suas personagens incrivelmente ricas de detalhes, ternura e realidade. Sei todos os seus livros de cor, no entanto cada vez que os releio as emoções são sempre diferentes, magníficas e mais intensas. A minha alma enriquece-se a cada instante de amor e de compaixão com que José Mauro retracta as situações vividas pelas suas personagens e as cores com que pinta o nosso imaginário, são de um puro e enorme arco-íris.
MUITA LUZ!

6 comentários:

  1. Mais uma vez estou voltando
    com as mãos estendidas
    para segurar as suas com infinito amor.
    Que , a alegria de dividir meus sonhos
    seja bem recebida por você e ,
    que você também compartilhe
    desse meu sonho.
    Que , nossa amizade nos permita compartilhar
    alegrias , felicidades e também nossas tristezas.
    A mais preciosa amizade é alimento ,
    que sacia nossa alma
    é aquela , que crê em nós
    é aquela , que nos aceita da forma , que somos ,
    pois somos seres humanos
    parecidos sim nunca com pensamentos iguais.
    Um abençoado e feliz final de semana.
    Beijos no coração ,paz e carinho na alma.
    Evanir.
    PS:Com a chegada da primavera na
    postagem tem um mimo
    da primavera.
    Carinhosamente te ofereço
    um mimo é simples mais feito com
    muita ternura.
    Uma oferta de amor pela nossa amizade.

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    1. Obrigada pelo carinho Evanir e pelo mimo.
      Beijinhos de Luz!
      Ana Maria

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  2. Ele é brilhante e maravilhoso mesmo.Adoro! beijos,lindo dia e fim de semana,chica

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    1. Chica, obrigada amiga.
      Beijinhos de Luz!
      Ana Maria

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  3. Lindo!!! Os seus livros fazem parte da nossa vida... e eu nunca vou esquecer o teu ar maravilhado pela minha leitura... acho até que os livros tinham mais graça quando eu os lia para ti. Beijinhos e um dia muito feliz. Parabéns!!! Adoro-te, mana!

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    1. Pois é, parece que ainda foi ontem, passa depressa mas o astral continua o mesmo. Adoro estar sempre contigo. Parabéns também para ti(atrasados).
      Beijinhos de chuvas de estrelas!
      Ana Maria

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